sexta-feira, 26 de dezembro de 2008


Essa é uma declaração que não caberia em palavras faladas. Nem tente imaginar uma voz lendo o que está escrito aqui. É a fala muda que vos fala, é a fala dos olhos. A mais transparente e íntima, que se revela sem querer. Mas aqui se revela por que quer. Porque quero.
Eu declaro que uma declaração só arde na boca de quem doa quando sai transbordando e reticente. E só arde no ouvido de quem ganha quando entra fervendo e dissolve o coração. Mas aqui arde nos olhos.

Eu declaro que sou capaz de me declarar todas as vezes que não me declaro. E sou capaz de te querer todas as vezes que não te quero. E sou capaz de me fazer capaz.
Eu declaro que me declaro..
Pra você, claro...

E por fim, declaro que essa é uma declaração sem fim, como uma verdadeira declaração deve ser.

sábado, 20 de dezembro de 2008


Observa formigas de vez em quando, ou as patas de qualquer inseto. Sente uma certa repulsa atraente por algumas coisas. Gosta de dar vida a bonequinhos, ou a pedacinhos. Cria nomes, gostos e preferências para eles. Nunca passa por um espelho sem cumprimentá-lo com uma nova cara. É dona de olhos grandes infantilmente interrogativos. Talvez seja rasa. Não tem ambições e não vê problemas nisso. Não quer dinheiro, não quer amigos, não quer amores. Só quer dormir e ter sonhos coloridos. Prefere o pequeno. O pequeno, quase invisível, não-notável. Chega perto pra ver melhor, ou pra inventar. E assim, o pequeno vira macro.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008


E lá estava eu, num dia esmaecido, daqueles cor de burro. Segurando um braço, amparando uma mão, empurrando um cigarro para uma boca vazia de palavras sem sal. Tudo sem cheiro e sem gás, e eu seria incapaz de descrever aquela cena, já que a cena não era aquela. Tudo se guardava em um ponto até então cego para mim. Nada daquilo podia fazer sentido, porque todo o sentido estava voltado lá para baixo, lá para a única cena do momento. E agora eu sou capaz de descrever fielmente, porque a cena era, absolutamente apenas aquela. Alguma coisa aconteceu e eu não sei bem o que foi. Mas o mundo parou pra contemplar o balanço do homem que vinha cansado, carregando uma sacola pesada. Pendia pro lado, grave, se sacudia conforme a música. Caminhava sozinho, mas todos os olhos eram dele. Estava implícito no ar o respeito daquele momento. Tudo que existia parecia reverenciar o deus da sacola de pedras. Até as nuvens me pareceram mais bem penteadas e uma meia dúzia de passarinhos bem mais afinados que de costume. O vento só ventava para ver dançar os poucos fios que o homem guardava na cabeça. E ele seguia numa simplicidade de dar pena. Aqueles segundos todos pertenciam a ele, mas ele, o protagonista, não sabia ! E eu quis gritar: "Moço, faça o que quiser, o mundo é seu exatamente agora! Aproveite!". E o grito ficou engasgado na minha garganta. Eu podia estragar toda aquela beleza de uma forma tão brusca, e pior, sem querer. E fui tomada por um sentimento estranho, de culpa ou de medo, sentimento de vácuo. O homem colocou a sacola no chão. Passou um carro. Acabou a música. E acabou a cena. Eu aplaudi, pra dentro, mas aplaudi. Qualquer interferência no final daquela cena tão delicada poderia estragar sua morte. E assim como ela veio, ela se foi. Tão sincera e tão marcante. Foram apenas segundos, mas eu posso garantir que a existência daquele homem já valeu a pena por esses pequenos segundos. Não devem ser todas as pessoas que conseguem um momento assim. E ele, sem saber, conseguiu.

domingo, 9 de novembro de 2008


Amava frouxo.
Amava sem gás.
Amava opaco.
Amava sem contorno.
Amava vazio.
Amava sem reflexo.
Amava escuro.
Amava sem sal.
Amava frio.
Amava sem espuma.
Amava a seco.
Amava sem dentes.
Amava furado.
Amava sem cheiro.
Amava pálido.
Amava sem ponta.
Amava magro.
Amava sem som.
Amava roto.
Amava sem sabor.
Amava desbotado.
Amava sem gelo.
Amava roído.
Amava curto.
Amava quebrado.
Amava mudo.
Amava murcho.
Amava velho.
Amava cru.
Amava ontem.
Amava sem.
Se é que amou.

Um machado cego não serve pra degolar. Mas se joga pesado, crava bruto e abre fendas. Fendas cavernosas, do tipo que gotejam. Minam. Escorre seiva amarga, lustrando os sulcos enquanto balbuciam sentimentos apertados. Encravados. Continuarão a gotejar, brandamente. Como notas de uma canção triste. Caem mornas, e sem hesitar, se deixam escorrer. Esfriando. Mas continuam assim, brandas e densas. Entranham-se pelos veios, para gotejar novamente, mais brandas e mais densas. Dando vida às fendas, que já nascem mortas. Craquelando ao secar.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008


Tem alguma coisa errada. Não sei bem o que é, mas tem. E é com a gente. Com a gente que anda por aí. Não enxergam nada. Têm olhos porque é conveniente enxergar, senão arrancariam pra carregar menos peso ao andar. Andam porque têm que chegar a algum lugar, senão não ousariam levantar. Parece que levam uma névoa em torno do corpo. Talvez sejam embaçados mesmo. Um borrão. Vários borrões, uns maiores, outros menores, pretos, brancos e coloridos. Borrões enfeitados, badulaques e penduricalhos sacudindo pra lá e pra cá. Não me dizem, não me olham. Ou não se dizem e não se olham. Só sabem falar com a boca e só sabem ler o que está impresso no papel. Não falam com os olhos, não beijam com as mãos, não lêem uma voz, não escutam um sorriso. Inflam seus pulmões e quase voam, de tão cheios. Cheios de informações. Sabem demais. Eu não entendo muito bem o que tanto sabem. Inventaram um monte de coisinha pra ter o que saber e sair por aí de peito estufado e olho embaçado. Parece que todos cantam a mesma música pra dentro, e eu não sei qual é. Pela cadência mórbida que andam e pelos olhos pesados que levam, essa música é um porre dos grandes. Prefiro não saber e continuar procurando pernas desorientadas e olhos vivos no meio desse marzão cinza. E gostando dos cachorros, que têm o que falta na gente. Na gente que se esgueira por aí.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008


O sono segue suave
Assopra um som
Seduz no sopro
Eu, sumo
Sumo
Cega
Sua

ss
s
s
.

De tanto te lamber minha língua ficou áspera, rasgou tua pele macia, expôs tua carne fria, que arrepiou meus pelos e eriçou meus poros. E assim nasceu o amor.

Seu cuspe é denso, de tantas palavras agarradas na língua, emboladas nos dentes, penduradas na boca. Sua vontade é cuspir, mas esboça um engasgo. Não é assim que se faz. Se empurrar as palavras boca abaixo, elas saem apavoradas e inseguras. Temem a queda. Cair no chão duro não deve ser mole. Mas, cá pra nós, ficar nessa boca mole é que deve ser duro.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008


- Cola sua orelha na minha pra eu te escutar bem la no fundo.
- Mas Amalinha, isso n..
- Cola !!!
*plec*
- shhhhh, agora faz silêncio senão você pode ficar inibido.
- Eu não tô inibido.
- É o você de dentro !
- Ah.. Bem..
- SHHH! Posso ouvir um chiado. Espera um pouco.. Estou ouvindo melhor...
- E.. então?
- Não vai se chatear comigo ? Vou dizer o que ouvi você dizer.
- Não, eu nunca diria nada que..
- Bem, você me disse que me acha a menina mais bonita da escola.
*glupt*
- Disse ??
- E ainda disse que quer namorar comigo.
- DISSE ?!?!
- Disse e disse.
- Nananão. Meu estomaguinho anda meio exigente, só querendo hamburguer com coca-cola. E então você entendeu que eu a achava a menina mais bonita da escola. E depois alguém foi me lembrar de que faz tempos que não limpo o umbigo. E você entendeu que eu queria namorar contigo!
- Puxa, Afonsinho, então não é verdade, voc..
- Ah Amalinha, não fica triste.
*Snif*
- Minha mãe bem que me lembra, mas eu também sempre me esqueço de limpar o ouvido !


Desabotoa a blusa com um tédio penetrante. Infalível.
Nada mais existe além desses botões naqueles segundos à parte. Naqueles segundos à parte, aqueles botões também não existem para mais nada. E nada importa. Nada ocupa e nada cabe.
As paredes não vigiam, os papéis não sugerem, os livros não sussurram.
Anseia por um fim sem direção. Sem foco, só o que se consegue são rodopios. E lá se vão os rodopios se espiralando num infinito cinzento.
Horizontalizando, atinge o oco. Sente um prazer desbotado escorrer.


Sentia o rosto rubro. O coração pulava, descompassado. Nas mãos, uma testa e um lápis. Via ali, naquela cena, a nudez da ansiedade. E seria pleonástico dizer que ansiedade não tem cabeça. Valorizava cada tracinho, cada ponto. Nunca soube, desde menina, apenas iniciar as coisas. Seus inícios nunca tiveram a fluidez que as coisas iniciais têm. Sobrecarregava seus primeiros atos a tal ponto que o estalido do novo virava trovão. E sempre tivera medo de trovão, com um grande parcela de culpa destinada à sua avó. Ali, apenas com suas pedras de estimação a espreitar, iniciava o prazer de escrever.
Seu nome não era Amália, mas naquele instante sentia que nenhum outro nome nunca vestira tão bem sua imagem. Valoriza os nomes que considera forte. Amália não seria um nome forte, mas não quer força nesse momento. Quer a mesma delicadeza e sinceridade de Clara, mas sem tanta obviedade, a mesa segurança e pureza de Ana, sem tanta fragilidade. Quer Amália, que pisa firme e direciona o olhar apenas para o que vê. E, acima de tudo, ama. Amá-lo-ia, Amá-la-ia, Amália.