sábado, 28 de fevereiro de 2009


Eu tava do lado de fora e vi tudo. Ela chegou sozinha e meio perdida, no meio daquela gente toda. Com passinhos tímidos, encontrou um canto que a agradou e ali ficou. Não procurava ninguém, não olhava para ninguém, não queria se acabar de dançar. Fumava uns cigarros e bebia, mas não me pareceu bêbada também. Ela só queria ser o mais próximo dela que podia. Dançava com calma, cantava o que gostava, ria de vez em quando e fechava os olhos algumas vezes. Eu tenho certeza que ela nao queria ser notada. Mas não que estivesse fugindo, ou estivesse com medo. Me pareceu que ela só via silhuetas e se achava mais uma silhueta anônima entre tantas. E estava ali por ela, sem querer ver e achando que não estava sendo vista. Mas eu que tava do lado de fora e vi tudo, vi que ela foi muito vista, mas muito vista. Todo mundo percebeu que ela destoava e alguns se dedicaram a examiná-la. E viram o que eu vi. Ela era ela, ela era singela, tinha um 'que' amargurado num semblante feliz. Ela tinha luz, tinha verdade, tinha paixão contida. Ela era a mais linda, e eu que tava de fora me apaixonei. Alguns outros se apaixonaram também e foram até ela. Eu sabia que isso não ia dar certo. Assustaram ela, claro! Ela se assustou e foi embora, e eu fui junto.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009



Sr. Moço: - Bom dia, Amalinha!

Amalinha: - Bom dia Sr. Moço, mas acho que não está bom.

Sr. Moço: - Oh, minha pequena. O que a faz pensar assim ?

Amalinha: - Bem... É que eu morri um pedaço.

Sr. Moço: - Ahaha... E qual é esse seu pedaço que você considera ter morrido ?

Amalinha: - O pedaço de dentro.

Sr. Moço: - Ah, o pedaço de dentro... E a senhorita me diria o porque disso ?

Amalinha: - Eu diria. E digo. Sabe quando você fica muito feliz e sente bem aqui pulando ? Ou então quando você fica muito muito feliz e sente tudo assim formigando ? Ou então quando você fica muito triste e sente bem aqui encolher...

Sr. Moço: - Hmmmm... Acho que sei

Amalinha: - É, então. Nada aqui dentro funciona mais. Nada pula, nada formiga e nada encolhe. Tá tudo tão paradinho que parece morto. Ou então.. Será que o meu pedaço de dentro tá só dormindo ???

Sr. Moço: - Ahhh, agora sim. Certamente está dormindo, Amalinha... Sabe, esse pedacinho deve ter brincado muito nos últimos dias e acabou se cansando. Agora deve estar tirando uma soneca, e em breve voltará novinho em folha !

Amalinha: - Ah, Sr. Moço, deve ser isso... Talvez então eu me remexendo desse jeito esteja atrapalhando o sono do meu pedaço de dentro, e aí ele nunca vai acabar de descansar e nunca vai acordar !

Sr. Moço: - É.. Bem...

Amalinha: - Já sei ! Vou deitar e dormir, até a hora que o pedaço de dentro acordar, que vai acabar acordando o pedaço de fora. E se ele nunca mais quiser acordar... eu vou dormir pra sempre junto com ele. Bons dias pra você, Sr. Moço.

Sr. Moço: - Ah, Amalinha... Bons dias... e boas noites.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009


A árvore


Era uma vez ela. Era duas ou três vezes ela, não importa quantas vezes fosse, era sempre aquilo. Ansiosa a esperar. Esperava passar o que queria ver. E enquanto isso, via de tudo. Via elefantes, mas achava-os feios. Via a chuva, e acabava se molhando. Via o medo, e acabava por senti-lo. E via de tudo um pouco, menos do que queria. Mas ela ali ficava, não ousava se levantar. E foi ficando por ali, por todos os dias da sua vida. Sentada na terra, esperava passar o que queria ver. Ia passando o sol, ia passando a chuva, ia passando a lua e ia passando o sol. Ela permanecia sentada. Já quase não se movia mais, te tão compenetrada que ficava, esperando pra ver a vida passar. Já não levantava, pois podia levantar justamente no momento em que passaria o que ela esperava ver. Suas perninhas foram se enterrando cada vez mais na terra. Seu corpinho foi se tornando cada vez mais rijo. Desaprendeu a falar, já que só sabia esperar. Desaprendeu a andar, já que só sabia esperar pra ver. E assim ganhou folhas, caule e raízes e transformou-se numa bela árvore sem frutos. Viu cometas, viu amores, viu leões e viu cordeiros. Passou de tudo um pouco por ali, menos o que ela tanto esperou pra ver.

Fim.

sábado, 21 de fevereiro de 2009


Fecho a porta pra respirar. Só sou livre trancafiada. Ninguém entra e só eu saio, mas volto pra respirar. Só aqui eu sou, ou só, aqui eu sou. Sem nada e sem querer é aqui que eu me acho e é aqui que eu me vou. Mas é pra cá que fujo, pra respirar. Aqui não tem gente, não tem medo, não tem olho e não tem dente, não tem voz e não tem escuro. Aqui não tem ladrão, não tem barulho, não tem cheiro e não tem casca. Não tem frio e não tem calor, não tem fome e não tem facas. Aqui é meu abraço. Aqui eu sou anônima, e eu só sou no anonimato. Aqui sou eu e eu sou aqui.

sábado, 7 de fevereiro de 2009


Meus dentes caíam mais do que o possível. Eu os juntava no abraço, como que para confortá-los por ainda estarem no meu corpo; em outra parte do meu corpo. Eram tantos... Iam se espalhando pelo asfalto, se partindo... Cada um tomava um rumo diferente, ia seguir a sua vida, mas meus braços continuavam pesados de dentes e minha boca sentia as quedas, uma por uma. Eu trancava a boca pra não deixar mais eles saírem, e enfim, mantê-la cheia de dentes. Cheia de dentes soltos, perdidos no céu da boca, boiando na saliva. Não me serviriam mais. Eu já não podia falar, já não podia rir, mas guardava aqueles pedaços de osso por medo de expulsá-los e me ver friamente desdentada. Os dentes já estavam a ponto de me sufocar, quando então, finalmente assumi minha condição de desdentada e cuspi-os. Um a um. Um parto de dentes mortos. Cada um que eu paria, eu sentia a dor na carne, eu vivia a perda. E assim, cuspi todos. Meus braços se enovelaram de dentes e meus olhos penderam para baixo, adotando o formato vivo de uma lágrima. Não chorei. Me vi. E vi que havia perdido apenas os dentes, e nada mais em mim. Continuava bonita à minha maneira e aos meus olhos, que são os olhos da minha verdade. Abri os braços e larguei aquela infinidade de dentes pelo chão, pelo ar, criei um mundo de dentes mortos, mas dei uma vida a cada um. Foi então que me surpreendi. Senti minha boca apertar. E lá estavam eles novamente... Só que dessa vez, inacreditavelmente brancos e lisos. Meus dentes vivos.